O Futuro do Direito começa no Presente

Como a “Alfabetização em Futuros” pode ajudar o profissional jurídico

 

Em 1º de março se comemora o Dia Mundial do Futuro. E o futuro, para muitos de nós, pode estar longe e ser algo vago demais para causar preocupações e interferências no tempo presente. Atualmente, porém, observar as recorrências e forças emergentes para futuros possíveis e desejáveis é uma técnica que, além de criatividade e exploração da imaginação, exige rigor e já tem sido devidamente reconhecida por grupos de especialistas no mundo.

Alfabetizar-se em futuros é algo que pode ser aprendido como qualquer linguagem e ramo de conhecimento e deve (ou deveria) começar a fazer parte do cotidiano organizacional e profissional, principalmente quando se fala em sobrevivência no mercado jurídico do Direito.

O conceito da “Alfabetização em Futuros” é relativamente novo, mas tem suas bases em tempos antigos, em esforços já realizados para se imaginar o futuro e incorporados à profecia, poesia, arte e filosofia, por exemplo, conforme especialistas do Copenhagen Institute for Futures Studies e da Organização das Nações Unidas para a Educação (Unesco) – Veja o conteúdo em https://en.unesco.org/futuresliteracy/about.

Estudiosos das instituições acima apontam, no artigo “O que é alfabetização em futuros e por que é importante”, que a alfabetização – antes relacionada apenas à habilidade de ler e escrever – hoje cobre uma ampla gama de competências e conhecimentos, segundo contextos específicos, como a alfabetização financeira e digital. Nesse sentido, a alfabetização em futuros trata da capacidade de se imaginar e projetar cenários desejáveis, a partir de mudanças de atitude no presente.

O design e a aplicação de ferramentas de “planejamento de cenários” e de “escaneamento do horizonte” têm sido realizados, em sua maioria, por profissionais especializados, estudiosos do tema, conhecidos como futuristas. Normalmente, os futuristas se reúnem em grupos e fundam os chamados think tanks – laboratórios,  hub de ideias – para ajudar governos, organizações e profissionais a projetar futuros.

E a capacidade de fazer projeções futuras é algo extremamente difícil para os profissionais da área jurídica, pois, desde a formação universitária até a prática profissional em escritórios ou departamentos jurídicos, nossos o conhecimentos e ações são marcados por estruturas que levam a conclusões baseadas nos fatos, em consolidação de entendimentos, sobrando pouco espaço para introduzir a imaginação e a criatividade para o necessário exercício de projeção de cenários.

Enquanto profissionais do Direito, buscamos maior previsibilidade para compreender as relações de causa e efeito dentro da dinâmica jurídica.

Fato é que as diversas situações de complexidade e incerteza surgem a todo momento e estão ao nosso redor, especialmente em nossa vida cotidiana enquanto profissional. Por exemplo, como no atual cenário de incertezas decorrente da pandemia de Covid-19: sentimos na pele a ausência total de um planejamento de macro cenários mais próximo ao que estamos vivendo, mesmo sabendo que esses fatos estavam no roadmap de diversos estudos de tendências, com a possibilidade real de se concretizar.

Isso mostra que nossa capacidade em lidar de forma sistêmica, religando conhecimentos com um olhar mais abrangente, é baixa, se comparada ao conhecimento superespecializado e isolado. A superespecialização acaba deixando cada ramo, buscando suas soluções dentro de um ambiente artificial, sem as interferências de outras camadas de complexidade. E a realidade nos demonstra, cada vez mais, a necessidade de aprender a lidar com o que é desconhecido e incerto, com um olhar que vai além do curto prazo e projetando macro cenários futuros.

E a melhor forma de dar início a esse processo de transformação cultural do aprendizado, seja no âmbito organizacional ou profissional, é mudar como encaramos as ações no tempo presente e quais ferramentas podemos usar para treinar esse tipo de observação. Para isso, existem técnicas específicas do futurismo. Mas, independentemente de qualquer técnica, gosto muito do que o futurista, cientista político e professor universitário de duas grandes universidades de Melbourne, Sohail Inayatullah, preconiza: o futuro como uma jornada de aprendizado, não como um local de previsão, a se alcançar.

Em entrevista sobre os métodos e a importância da educação e prática orientadas para o futuro, Inayatullah dá dicas sobre alguns passos que funcionam e que costuma orientar quanto à aplicação – todas decorrem do resultado de um trabalho de mais de 40 anos. Aqui, vou resumir alguns dos pontos (de forma muito sintética) e relacioná-los ao Direito:

 

Primeiro, precisamos olhar para o futuro como uma jornada de aprendizado, não como um local de previsão. Queremos a resposta certa, queremos que algoritmos nos tragam previsibilidade, mas a aprendizagem de futuros requer a conexão de repertórios diversificados e da nossa capacidade de abstração, a qual todos nós podemos treinar. No Direito, podemos e devemos fazer isso como em qualquer outro ramo de conhecimento;

 

Segundo, devemos desafiar o futuro, ou práticas que não funcionam mais, em vez de insistir e se apegar a modelos que já estão obsoletos, observando como reconciliar os objetivos contemporâneos com estruturas antigas. Se estamos vendo que a nossa atuação – fortemente burocrática, inflexível, pouco colaborativa e criativa – nos cria entraves para atuar nos cenários emergentes, o modelo já está potencialmente desequilibrado e frágil para acompanhar as mudanças do Século XXI;

 

Terceiro, precisamos explorar questões emergentes sobre como o futuro está mudando. Existem forças emergentes que atingem tanto a prática jurídica, como a interface com o Judiciário e o próprio Direito. Assim, é preciso articular novas reflexões criativas para incluir as forças emergentes na equação;

 

Quarto, devemos criar futuros alternativos, pensando em interferências sistêmicas para nos trazer novas perspectivas. Atualmente, sofremos de uma severa crise de percepção e somos falhos em avaliar a totalidade dos acontecimentos. Todavia, no ambiente jurídico, por apenas buscarmos mitigar riscos, deixamos de surfar na onda hiperturbulenta da incerteza. Mas saber lidar com isso é fundamental para essa projeção;

 

Quinto, para criar um futuro preferido, precisamos de interdisciplinaridade, isto é, acoplar conhecimentos de outros ramos, como, por exemplo, o design – onde será permitido extrapolar a realidade pensando na solução de problemas (não conseguiremos prever todas as consequências, mas o norte do futuro preferido precisa ser traçado dentro de uma jornada);

 

A lição que fica sobre a alfabetização em futuros, então, que eu gostaria de compartilhar neste texto é:

 

Temos de discutir as formas de aprendizagem do Direito em vez de continuar resistindo a isso, principalmente as que não funcionam mais, pois estas nos dão uma visão apenas de curto prazo;

 

Precisamos ser menos cartesianos e observar as forças emergentes;

 

Assim, a partir da compreensão dos diversos contextos, visualizaremos melhores cenários de longo prazo e seremos capazes de desenvolver esse “olhar a longo prazo”, pensando e agindo mais estrategicamente, com criatividade, para redirecionar nossas carreiras e práticas jurídicas para o futuro. Isso traz um grande potencial, tanto para carreiras jurídicas quanto para a sociedade. Que tal vir comigo e começar a pensar sobre isso?

 

Sílvia Piva

Mestra e Doutora em Direito pela PUC-SP

Fundadora da Nau d´Dês

Colunista Especialista de Mercado Jurídico do AAA Inovação

Sócia do GHBP Advogados